“Ser Voluntário”

Enquanto voluntária numa associação de animais abandonados, venho aqui contar um pouco da minha experiência.

PsiCanis | Treino de Cães e Pet-Sitting | Mafra, Sintra, Torres Vedras

No primeiro dia em que entrei no canil senti um misto de emoções. Entusiasmo, por começar a fazer voluntariado, e algum choque, porque por mais que pudesse imaginar como seria, nunca estamos preparados.

Fui com um grupo de amigos e logo antes de chegarmos à porta já se sentia aquele odor forte e ácido que quase faz arder os olhos. Mais tarde, foi algo a que nos habituámos, tal como a roupa suja de fezes, urina, por vezes até sangue. Não é fácil de início, mas chega uma altura em que já nem pensamos nisso.

Foi uma surpresa ver que os cães estavam todos visivelmente bem tratados, sem sinais de magreza nem doença na sua maioria, tendo em conta as péssimas condições do canil. De uma forma geral pareciam cães comuns, que podiam ser de qualquer um de nós. Mas, com o tempo, vamos aprendendo a ler no seu olhar. Tanta excitação por verem pessoas novas! Tudo saltava e ladrava! Uns mais efusivos, outros mais recatados, muitos curiosos. Tantos olhos postos em nós.

Distribuídos por várias zonas, havia muito mais cães. Todos diferentes mas em comum o abandono, o esquecimento. Estavam “a mais” nalgum sítio e ali foram parar.

As condições do canil eram terríveis, buracos no chão por onde andam ratazanas, abrigos partidos e remendados onde entra a chuva, uma fossa constantemente cheia e entupida, portões corroídos pela ferrugem, redes metálicas retorcidas e partidas, paredes cobertas pela humidade e sujidade. Os voluntários e os tratadores tentam manter as zonas minimamente limpas, mas com tantos animais e com estas condições é uma tarefa ingrata tentar dar algum conforto e bem-estar a estes cães. Munidos de galochas e roupas impermeáveis, pás, vassouras e muita vontade, os voluntários fazem o que muitos se recusaram. Cuidar dos animais, distribuir ração e água fresca, dar medicação, limpar, brincar e acarinhar, ajudar em tudo o que for necessário.

Alguns cães vão partindo, porque são finalmente adoptados ou porque chegaram ao final da sua vida, mas outros tantos vão entrando. O canil deveria ser um abrigo temporário mas para muitos infelizmente não o é.

A melhor parte do trabalho são os passeios, as brincadeiras, os mimos. Vê-los felizes a brincar nas poças de água, a correr, para que possam ter um bocadinho daquilo que os nossos têm, nas nossas casas. A distribuição de biscoitos e mantinhas no Natal é uma alegria! Ficam tão contentes com tão pouco e agradecem-nos sempre, cada um à sua maneira.

Mas dói… dói sair de lá e deixá-los para trás, dói não poder fazer mais, dói o sentimento de incapacidade e impotência perante determinadas situações. Muitas vezes saímos de lágrimas nos olhos e com um nó na garganta. O choque de estar num canil é brutal para alguns cães que não se adaptam. Alguns parece que desistem mesmo de viver.

As adopções têm sempre um sabor agridoce. Nenhum merece viver num canil, mas a verdade é que todos eles são um pouco de nós e nós deles. Quando há uma adopção o sentimento é de alívio e felicidade por sabermos que vai ter uma casa e a família a que têm direito. Fica para trás a saudade e a recordação dos momentos que passou connosco, daquele passeio, aquele carinho, do seu olhar.

Revoltante é quando alguns voltam passados dias, meses ou anos. Porque não se adaptaram, porque os humanos esperavam mais deles, porque fazem as necessidades fora do sítio, porque vai haver uma mudança de casa, a família aumentou, porque as condições de vida se alteraram. Para algumas pessoas a solução é “despejar” o cão no canil novamente porque se tornou um “empecilho”. Nalguns casos, este ciclo repete-se várias vezes, tornando, consequentemente, ainda mais difícil o processo de adopção e adaptação desse cão que já foi abandonado tantas vezes e perde toda a confiança nas pessoas. São tratados como coisas que se compram, trocam e devolvem.

Ser voluntário é gratificante, mas também revoltante quando nos apercebemos que muitas vezes não se faz mais porque não se quer, porque existem outros interesses envolvidos nos canis, nas associações em geral. Por vezes quem devia proteger os animais que tem a seu cargo, é quem os prejudica também.

Anualmente são abandonados centenas ou milhares de animais domésticos, muitos desses encontram-se em canis municipais, muitos ainda com política de abate, em associações, FAT‘s, etc. Outros vivem na rua, sobrevivem com a ajuda de alguns amigos dos animais ou daquilo que encontram, ficam doentes, feridos e morrem sozinhos.

Antes de adoptarmos/comprarmos um cão ou gato, devemos pensar seriamente se estamos dispostos a nos responsabilizarmos por ele para o resto da sua vida, independentemente das circunstâncias.

Rodrigues, N. (2014), “Ser Voluntário”. Revista Cães & Lobos, 12, 48-49.

Dezembro 27, 2023

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